Criador do Oficina, o homem de teatro tinha 86 anos e estava internado devido a queimaduras causadas por incêndio em seu apartamento. Fim de uma carreira ímpar, sob o signo da “tragicomediorgya”.O dramaturgo, diretor, ator e encenador José Celso Martinez Corrêa, expoente das artes cênicas, criador do Teatro Oficina e conhecido simplesmente como Zé Celso, morreu nesta quinta-feira (06/07), aos 86 anos.

Ele estava internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital das Clínicas, em São Paulo, após ter 53% de seu corpo afetado por queimaduras causadas por um incêndio em seu apartamento.

O Teatro Oficina se despediu de Zé Celso por meio das redes sociais: “Tudo é tempo e contra-tempo! E o tempo é eterno. Eu sou uma forma vitoriosa do tempo. Nossa fênix acaba de partir pra morada do sol. Amor de muito. Amor sempre”, escreveu no Twitter.

Transgressão e experimentação

Nascido em Araraquara, no interior de São Paulo, em 30 de março de 1937, Zé Celso iniciou sua carreira nos anos 50. Um primeiro marco de sua atividade transgressora como diretor, foi a montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, em 1967, um espetáculo-manifesto que se tornou emblema do movimento tropicalista.

Profundamente inspirador para Zé Celso foi o Manifesto Antropófago de Andrade: a criação de uma linguagem artística própria através da ingestão e transformação das influências estrangeiras. O autor propunha uma versão idealizada da antropofagia dos indígenas, que consumiriam o inimigo mais valoroso, não para destruí-lo, mas para incorporar suas melhores qualidades.

No ano seguinte, a encenação por Zé Celso da primeira obra teatral de Chico Buarque, Roda Viva, causou escândalo, tachada de “degradante” e “subversiva”, culminando na invasão do Teatro Ruth Escobar por um comando anticomunista. Em 2018, o Oficina Uzyna Uzona celebrou seus 60 anos com uma remontagem.

Oficina, Uzyna Uzona, Bixiga e muito além

Em 1958, Zé Celso foi um dos fundadores do Teatro Oficina, uma das mais longevas companhias de teatro em atividade permanente do Brasil.

“Nós chamamos o nosso teatro de Oficina e escolhemos como símbolo a bigorna, porque isso significava trabalho, e se pretendia ligar o trabalho teatral a qualquer outro, colocando o ator como um operário, como um simples proletário, para desmistificar certa ideia de que o teatro é uma coisa mítica, dependendo de dom, vocação e até mesmo de um apelo religioso”, definiu o próprio Zé Celso.

Mais tarde o nome da instituição seria ampliado para Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona. A própria escolha do local, o bairro paulistano do Bixiga, foi programática. Como consta do website do teatro: “Refúgio periférico, quilombo de escravos africanos fugidios durante a época colonial, o Bixiga se tornou uma área confinada entre o antigo centro colonial e a elitista Avenida Paulista do século 19.”

“Abolida a escravidão, um coro de imigrantes italianos aterra no bairro, construindo suas oficinas de artes e ofícios, pequenos sobrados, com a porta das oficinas abertas pra rua, dando a escala humana pro recém nascido bairro.”

“1961, atraídos pela terra antropófaga do Bixiga, o grupo assenta na rua Jaceguai, 520, na crença de estarem alugando um teatro, encontraram um galpão vazio, sem equipamentos, sem mobiliário, sem nada que caracterizava o teatro dos antigos locatários.”

O arquiteto Joaquim Guedes cria “um teatro-sanduíche, duas plateias frontais divididas pelo palco central, cada plateia com capacidade para 100 pessoas. Público se encarando frente a frente, atores no meio do caminho, subvertendo as convencionais separações entre palco, bastidores e plateia. Público no fundo de cena, posto em cena pela própria arquitetura.”

À boa moda trágica, essa primeira fase do Oficina termina em chamas: em 1966, grupos paramilitares incendeiam o prédio. “Teatro e arquitetura que perturbavam a ordem urbana militar agora estavam devastados com o desmantelamento dos tijolos e argamassa da arquitetura revolucionária do grupo”, narra o website, e conclui: “O incêndio foi o prelúdio que ascendeu [sic] o fogo Da Vela antropófaga de Oswald de Andrade.”

Vida e morte como tragicomediorgya

“Futebol já é cultura, mas o teatro pode vir a ser o esporte das multidões!” Teat(r)o, Uzyna Uzona, “macumba antropófoga”, “terreyro eletrônico”, “tragicomediorgya”: a trajetória transgressão de Zé Celso foi também de experimentação linguística, conexões surreais, fusão de extremos incompatíveis.

Em sua própria definição: “A vida é trágica; mas ela é cômica. E é orgiástica. Eu defino assim, tragicomediorgya. Não basta a tragicomédia, tem que ter a orgia, que é a origem do teatro. Não só a orgia sexual, mas em todos os sentidos.”

Como relatou numa entrevista à DW em 2004, uma ferida biográfica que contribuiu para essa visão de mundo foi a morte, em 1987, de seu irmão, Luís Antônio Martinez Corrêa, como ele, homem de teatro e homossexual. Depois de assaltá-lo, o assassino, um surfista, o deixou amarrado e mutilado em seu próprio apartamento, estrangulado e esfaqueado 107 vezes. Sexo e morte: Pier Paolo Pasolini, Claude Vivier – uma velha história.

De certa maneira, tudo em que Zé Celso tocava se transformava em tragicomediorgya. Encenar Os Sertões, baseado no épico de Euclides da Cunha, foi um sonho longamente acalentado e vivido intensamente, em quatro longas partes. O resultado foi uma “obra imensa”, muito além de qualquer fronteira geográfica ou conceitual previsível.

A pré-estreia da quarta parte, A Luta, foi em 23 de maio de 2004, numa antiga mina da zona mineira no oeste da Alemanha, na primeira turnê internacional do grupo. Na prática, um generoso ensaio aberto, em que o público foi envolvido, fascinado, instigado, provocado. Vozes, corpos, comida no corredor do “teatro-sanduíche”, terra, suor, sexo (um espectador quase agride uma atriz seminua que tenta “violentá-lo”) – como se os anos 70 nunca fossem acabar.

Apenas breves flashbacks de uma carreira artística de mais de 60 anos de excessos e extremos. Pouco antes morrer, em 6 de julho de 2023, das consequências de um incêndio em seu apartamento, José Celso Martinez Corrêa se casara com seu companheiro de quatro décadas, o ator e diretor Marcelo Drummond, numa cerimônia no Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona.

Políticos e artistas lamentam a morte

Por meio do Twitter, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lamentou a morte “de um dos maiores nomes da história do teatro brasileiro”.

“José Celso Martinez Correa, ou Zé Celso, como sempre foi chamado carinhosamente, foi por toda a sua vida um artista que buscou a inovação e a renovação do teatro”, escreveu Lula. “Corajoso, sempre defendeu a democracia e a criatividade, muitas vezes enfrentando a censura. Transformou o Teatro Oficina em São Paulo em um espaço vivo de formação de novos artistas. Deixa um imenso legado na dramaturgia brasileira e na cultura nacional.”

O vice-presidente Geraldo Alckmin destacou o impacto causado pelo dramaturgo e pelo Teatro Oficina: “José Celso Martinez escreveu uma rica história pessoal e para o Brasil. Irreverente, provocativo e dono de uma enorme capacidade inventiva, Zé Celso tornou o Teatro Oficina um patrimônio da cultura brasileira e um celeiro de talentos para nossos palcos.”

O cantor, compositor e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil escreveu: “Zé Celso marcou a história do Brasil e seu legado será eterno! Nossos sentimentos a familiares, amigos e admiradores.”

O cineasta Kleber Mendonça Filho se manifestou sobre o legado de Zé Celso para a cultura brasileira como um todo: “Eu não sou do Teatro, mas meus filmes foram todos impactados de alguma forma por Zé Celso, com a energia de atrizes e atores, da arte e pitacos amigos de roteiro, um senso de direção e visão sobre o Brasil. Esse é o significado de um real impacto na Cultura. Obrigado Zé Celso.”

Em entrevista à GloboNews, a atriz Irene Ravache lamentou a morte do “gigante, revolucionário, iluminado” Zé Celso.